sábado, 15 de novembro de 2008

A menina de Val de Grifos

A menina de Val de Grifos

O conde do Val de Grifos olhou com desdém para o conteúdo do cesto que o seu criatoris lhe apresentava.

- Não adianta, Ioachim. Desta leva, perdemos todos os ovos de machos. Mesmo este é imprestável, veja as marcas.

O velho serviçal acompanhou o dedo de seu senhor com os olhos e assentiu. Ovos de grifo, sendo de natureza mágica, tem suas peculiaridades. Uma delas é justamente a coloração pardacenta característica dos ovos com filhotes de fêmeas. Já os que possuíam pequenas manchas verdes, espalhadas uniformemente pela casca, daria origem a um grifo macho, ser dos mais fortes do continente. As cores surgiam na última semana de choco. Infelizmente, no ano anterior, justamente na época do cio, as fêmeas do Vale dos Grifos sofreram de uma estranha praga e agora todos os ovos machos estavam completamente esverdeados, uma tonalidade que lembrava o mofo nas paredes externas do castelo. Daqueles ovos, só nasceriam criaturas fracas e aleijões.

- E o que faremos com os ovos, senhor?

- Furem e joguem nos espinheiros. Os animais darão um jeito. Temos que pensar em como faremos nas feiras desse ano. Vamos ter que caçar alguns filhotes...

O responsável pelos ovos concordou.

- Os monteiros disseram que há um grupo grande nas montanhas ao sul...

-Livre-se disso e vamos reunir o grupo de caça. – e retirou-se, deixando o serviçal sozinho.

A família de dom Diogo estabelecera-se naquela região, um pequeno vale espremido entre montanhas, há muitos séculos. Estavam ali mesmo antes da chegada dos hassamitas, quando o Império ainda consolidava-se na Ibéria. A história que a família nega é de que seriam gitanos membros de um culto de devotos da deusa negra de muitos braços, vindos do rio Hindu. Os registros do castelo, quase tão antigos quanto a construção de pedra em si, contam que os Val de Grifos descenderiam de do casamento proibido de uma princesa-sacerdotisa dos germanos e um dos últimos generais latinos na ilha da Ibéria.

Mesmo que de origem duvidosa, a família tornara-se reputadíssima em todo o continente. Sua fama espalhou-se, afinal a região deles era o último refúgio natural de grifos em todo o continente. A ferocidade dessas bestas fizeram com que se tornassem uma atração muito procurada nos Circus Maximus dos latinos, enquanto que alguns outros povos os caçavam para tentar domesticá-los. Só naquela remota região da Lusitânia os animais conseguiram sossego e voltaram a reproduzir-se. Os Val de Grifos souberam aprender com o passado e evitaram caçar os animais em demasia. Com o tempo, conseguiram roubar alguns ovos e criaram os grifos no castelo. Nem sempre tinham uma estação de nascimentos proveitosa, com as pragas e com os contratempos de tentar manter criaturas mágicas em cativeiro.

Ioachim lamentava-se em pensamento. Não gostava de caçadas, eventos arriscados, e também temia que o conde descontasse a frustração da perda do negócio nele. Teria que organizar tudo e pedir a Runescio, o deus do arpão, que os guiasse com segurança.

- Ioachim, o que tem na cesta?

Sobressaltou-se ao ouvir a voz.

- Menina Brites, seu pai já não lhe mandou ficar fora do pátio dos grifos?

A moça de cabelos castanhos e olhos negros fez um gesto largo, dispensando o aviso do serviçal.

- Vim trazer um recado para o meu pai, há emissários do Imperador querendo ver o conde com urgência. Mas anda, diz o que tem aí...

- A menina sabe que mesmo assim...

Foi interrompido pelo chamado de seu senhor.

- Ioachim, já se livrou daquele cesto? Anda, precisamos partir imediatamente! O imperador quer uma tropa inteira de grifos para o próximo outono!

Olhando o cesto, Ioachim ficou sem saber o que fazer. Num impulso, quebrou a etiqueta do castelo.

- A menina não me faria o favor de jogar isto fora para que eu possa atender o seu pai?

Antes que ela pudesse responder, o velho passou-lhe o cesto e saiu correndo, deixando Brites sem ação. Olhou o conteúdo do cesto e deu de ombros ao perceber que era um ovo. Já estava acostumada ao efeito que as pragas tinham na criação de seu pai. Amava os grifos, animais grandes como os maiores touros, com corpos de leão e asas de águia, patas e cabeça de aves de rapina, porém confiava na sabedoria dos deuses, principalmente em Ategina, senhora da natureza e dos nascimentos. Se não era para nascerem grifos nos pátios do solar naquela primavera, que assim fosse.

Mas enquanto ia para o lugar do lixo, carregando o cesto pesado com dificuldade, uma idéia surgiu em sua mente. Por diversas vezes, tentara convencer seu pai de que possuía capacidade para ajudar a criar e treinar os animais. Passara todos os quatorze anos de sua vida envolvida com as criaturas. Aprendera as artes femininas com afinco, principalmente quando o velho mago confirmara sua falta de talento na magia, porém sempre fora apaixonada pela vida ao ar livre e escapava para o Pátio dos Grifos sempre que surgia a oportunidade.

Se ela chocasse aquele ovo e conseguisse tornar o filhote que dali saísse em um guerreiro como os outros, o pai ia se convencer da sua capacidade. Quem sabe mesmo deixa-la como herdeira, ao invés de seu irmão, um preguiçoso covarde, que tremia de medo ao chegar perto de um grifo filhote.

Decidiu-se. Tinha o lugar certo para chocar o ovo, em um pedaço afastado do castelo, uma torre em ruínas. Recolheu alguns ninhos velhos de corvos para acomodar seu tesouro. Ovos de grifo não precisam ser chocados da forma como os de aves. Uma vez por dia deveriam ser expostos a luz do sol. Na natureza, em dias nublados, os grifos machos voavam até as nuvens que afastavam para deixar raios solares passarem. No castelo, um mago elemental interferia no tempo diariamente para que o processo corresse de acordo. Por sorte, os jovens grifos nascidos no ano anterior ainda não estavam completamente maduros e precisavam tomar sol diariamente. A menina só tinha que ficar atenta para expor o seu ovo na hora correta.

Sorriu ao pensar que em breve teria um grifo só para si. E em três meses, ele seria capaz de voar com ela.

***

Foram dias complicados, pois a semana foi repleta de dias nublados e chuvosos. Ela teve que ficar atenta a movimentação do velho mago elemental que servia a dom Diogo, para saber o momento exato em que ele iria fazer o sol surgir. Teve que acordar cedo e se esgueirar pelos pátios, fugindo de suas tarefas cotidianas. Para sua sorte, com a necessidade de localizar os grupos de grifos selvagens para capturar os filhotes assim que nascessem, ninguém prestava muita atenção no que ela fazia.

Ela chegou nas ruínas bem cedo na manhã do dia em que esperava o nascimento de seu grifo. Seu grifo. O pensamento era atordoante. Teria uma das criaturas mais poderosas do mundo conhecido ao seu dispor. Ela iria treiná-lo e provaria ao seu pai que podia ser Senhora do Val dos Grifos, não seu irmão trêmulo que se enfiara num trivium para estudar letras e números. E sonhava alto, pensando em como Dom Diogo iria reagir ao ver sua capacidade de treinar um aleijão e fazê-lo tornar-se um animal digno daquela terra.

O ovo começou a rachar e Brites segurou a respiração. Era agora. Se o grifo tivesse uma das asas com defeito, nada poderia fazer... o vôo seria impossível e o animal morreria antes de tornar-se adulto.

Quando o grifo saiu da casca, Brites quase bateu palmas. As asas eram perfeitas, pequenas miniaturas das que os adultos possuíam. Olhou com atenção e viu que havia falhas nas penas do pescoço, nada que comprometesse a capacidade de vôo... Só quando o pequeno filhote tentou andar é que percebeu qual o problema mais sério de seu novo amigo. As patas eram tortas e pouco firmes. Isso iria dificultar o treino, mas não o tornaria impossível.

- Bom, meu caro grifo. Teremos um longo treinamento, mas serás tão capaz quanto qualquer outro dessa propriedade. Rivalizarás com os teus primos selvagens, é só confiar em mim.

O ser olhou-a parecendo desconfiado, mas emitiu um som agudo que Brites tomou como sinal de concordância.

- Temos que te arranjar um nome... que tal Dom Torreão? Vais viver aqui por um bom tempo mesmo, até poder mostrar-te para o senhor destas terras.

O grifo começou a coçar as penas, pouco interessado na distribuição de poder no monte de pedras que era a região montanhosa num canto extremo da província da Lusitânia. A cidade mais próxima de Val de Grifos era Aquae Flaviae que mal tinha um corregedor.

Brites o alimentou com um preparado de carne crua reservado para grifos jovens. Conseguira roubar um pouco da ração dos animais mais crescidos e batera mais um pouco para o jovem Dom Torreão conseguir mastigar.

E ao ver seu grifo comer a carne com satisfação, soltando vez por outra grasnidos contentes, sentiu que sua vida podia mudar.

***

Faltava uma semana para Brites tornar-se uma moça, ao completar quinze anos, quando seu pai a chamou. Estava treinando Dom Torreão a mais de dois meses e já podia ver os resultados. Encheu-se de coragem, pois pensava em anunciar seu grande triunfo e finalmente poder dizer ao pai o que estava fazendo. Afinal, o grifo voava com majestade, era obediente e veloz. No ar, não se percebia os defeitos nas patas.

Parou no corredor, olhando para a porta e reunindo forças para encarar o homem que governava a sua vida. Dom Diogo do Val de Grifos era um homem imponente, rico e poderoso. Em suas terras, habitavam os últimos grifos de toda a Ibéria Lusitânia, raça essencial no transporte de mensagens e também na guerra. Isso dera uma imensa fortuna aos ancestrais de Dom Diogo que ele mantinha com sabedoria. Nas guerras intestinas que dividiam o Império, nas quais Castela, Aragão, Leão, Lusitânia e Galicia disputavam a coroa imperial, declarara que não iria fornecer as bestas para nenhum dos exércitos. Claro está que não cumprira isso, traficando grifos para todos os exércitos, além dos hassamitas de Granada que assistiam às disputas com curiosidade.
Ela entrou no grande salão da casa senhorial em silêncio. Apesar do pai a estar esperando, sabia o suficiente para não desagrada-lo entrando de forma brusca ou impetuosa. Já fora repreendida diversas vezes por seus modos deselegantes e pouco apropriados a uma jovem caçula de casa tão nobre. Iria segurar sua novidade até o último instante.

- O senhor mandou-me chamar, senhor meu pai?

- Chamei, sim, filha. Sabes que em sete dias a partir de hoje, teu irmão completa dezoito anos. Oficialmente, torna-se meu único herdeiro, já que tua mãe só me deu um filho. È preciso deixar teu destino acertado, pois em pouco tempo serás uma mulher.

Brites podia ver o rumo da conversa e não estava gostando nada. Sabia dos costumes daquele lugar afastado. Seria uma péssima hora para interrompe-lo e contar a grande surpresa.

- Pois decidi que irás casar com o filho do Duque da Galícia, que é neto do falecido Imperador D. Sancho IV.

Infelizmente, Brites estava certa. Meses atrás, esta seria uma notícia horrível. Mas aquele momento, era a pior coisa que poderia acontecer. Seu grifo ainda não estava completamente treinado e não conseguiria sobreviver sem ela. O pai sequer a deixou respirar.

- As damas do duque estarão aqui amanhã para ver-te e atestar tua boa saúde, além de verificar que ainda és donzela. Já mandei virem costureiras e estas coisas para fazerem teu enxoval. O noivado será na festa do aniversário do teu irmão. Agora, vai-te que tens muito o que providenciar.

Brites conteve-se para não correr enquanto estava às vistas de seu pai. No instante em que colocou o pé fora do grande salão, no entanto desatou a correr. Não sabia para onde estava indo, apenas deixava seus pés e seu desespero a levar.

Ia perder tudo, ser levada para um lugar distante. Sem seu pai, sem o castelo de pedra, sem os grifos... Sem Dom Torreão...

Sua corrida cega a levara até o esconderijo de seu grifo. Já estava crescido, quase no tamanho máximo que iria atingir. Ainda teria que criar mais corpo e força até poder carregar um cavaleiro de armadura, mas já voava alto e sem empecilhos.

- Ai, Dom Torreão, que está tudo perdido! Que vou fazer contigo? Não posso levar-te e não quero entregar-te ao meu pai, ele vai te matar!!!

O animal estava limpando as garras tranquilamente. Não se preocupava com destino ou tragédias, mas não gostava de ver a menina daquele jeito. Deu um grasnado rouco e aproximou-se dela. Mesmo sendo ainda um filhote, já a ultrapassava em altura. Com o bico, cuidadosamente cutucou-lhe o ombro.

- O que queres, hein? Não trouxe carne, não pude passar na cozinha...

Em resposta, Torreão abriu as asas e olhou para o alto. Brites entendeu.

- Queres voar... comigo?

O grifo olhou-a, esperando. Engolindo em seco, pois seria a primeira vez que montava em um daqueles animais e não estava com nenhum dos equipamentos necessários, Brites subiu no pelo marrom e agarrou-se no pescoço, na parte onde não havia penas.

Com um movimento levemente desajeitado, devido às patas tortas, Torreão levantou vôo. Nos primeiros momentos, Brites manteve os olhos fechados. Sentiu a vertigem da subida e o vento zumbindo em seus ouvidos. Quando percebeu que o animal parara de ganhar altitude, conseguiu olhar em volta.

O castelo estava lá embaixo, tão pequeno; dali, não parecia a construção imponente e secular, mas apenas um amontoado de pedras. As árvores ao redor pareciam arbustos. O sol batia em seu rosto e nuvens baixas pareciam estar ao alcance das mãos.

Torreão começou a baixar e voltar ao castelo.

- Não. Pare. Não vamos voltar lá. Nosso destino tem que ser outro.

Decidira ali, naquele momento. Sua vida não seria a que seu pai planejara. Pensou em ir até Aquae Flaviae, mas lá provavelmente alguém a reconheceria. Sorriu ao lembrar das histórias dos viajantes. Só haveria um lugar na Lusitânia em que estaria escondida de seu pai.

Rezando aos deuses do ar e da terra para que estivesse indo na direção certa, apontou para Torreão a direção em que pensava estar Olissipona, a capital e maior cidade do império lusitano.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

De começos, fins e príncipios

Sumi, eu sei.

Sem desculpas, a vida é essa e infelizmente não sou paga para escrever. Finisterra anda indo, devagar e sempre. Prometi ao Estevão que não durmo sem trabalhar pelo menos uma página do livro todos os dias. Assim, tem dias que eu escrevo, outros revejo.

O começo do livro estava me preocupando. A primeira introdução, escrita como se fosse Rui de Pina, me parece longa, pomposa e enfadonha:

http://br.geocities.com/anacriscr/intro.doc

Escrevi outra, mais direta e simples, porém me pareceu mais... fraca:

http://letraevideo.wordpress.com/2008/07/08/finisterra-moonspell-ana-cristina-rodrigues/

ENquanto isso, ignoro o problema e sigo escrevendo. Um dia, isso termina.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

quinta-feira, 20 de março de 2008

Mas onde fica Finisterra?



Infelizmente, não achei na net uma boa reprodução colorida do mapa acima. Pra quem não sabe, Johan Ruysch foi um cartográfo (e mais um zilhão de coisas diferentes) do século XVI e é famoso por ter executado o segundo mapa impresso em que aparece a América (mais ou menos)... O tal mapa aparece em edições da Geografia do Ptolomeu complementando as demais 'tabulas' que representavam o mundo conforme descrito pelo geográfo grego (que morreu no século II d.C.).


A BN do Rio tem um fac-símile, uma cópia do século XIX, na coleção do Imperador - com a qual eu trabalho. E foi por esse fac-símile que eu me interessei pelo mapa em si e resolvi que vou adotá-lo como a visão gráfica do mundo que envolve Finisterra.










Aqui do lado, o que seria o Brasil - a Terra Sancte Crucis 'Terra de Santa Cruz'. Esse nome VAI rodar no livro, por que a cruz não tem o mesmo significado nesse universo. Não consegui pegar o detalhe em que a aparece a Terra Papagali, uma ilha no Atlântico, que vai ter um grande papel no desenrolar da viagem.











Mas enfim, o título do post é 'onde fica Finisterra?'




Longe, muito longe, da Ibéria Lusitana...

Eu devo pedir em breve uma cópia digitalizada do mapa da BN que é bem mais simplificado... e vou trabalhar em transformá-lo. Valhei-me, são Photoshop!
Links sobre o Ruysch e seu belo mapa:

terça-feira, 4 de março de 2008

E. Gary Gigax (1938 - 2008)

Eu deveria falar hoje mais um pouco de 'Finisterra'. Responder comentários do post sobre Pero, contar que o segundo capítulo ruma à sua conclusão e etc.

Só que hoje não dá.

Hoje faleceu o co-criador do Dungeons and Dragons, o primeiro 'role playing game' de fato e direito do mundo; e eu mesma fiquei surpresa com o quão triste fiquei. Não fui, como muitos amigos e colegas, apresentada ao mundo da literatura fantástica pelo D&D. Não não. Quando começei a jogar, já tinha lido Tolkien, MZB, Walter Scott, Garcia Marquez, Asimov e mais alguns. O D&D não me incentivou a ler, hábito que tenho desde antes de ser alfabetizada, inventando histórias para gravuras em um livro. O RPG não me apresentou a mundos fantásticos e desconhecidos (bem, não de ínicio...).

Mas foi mestrando AD&D sábados a fio aos meus quinze anos que descobri o que queria realmente ser. O jogo criado por Gigax e seu amigo, Dave Arneson, mostrou-me o prazer de contar histórias. Sim, foi mestrando AD&D que eu me convenci a ser escritora.

As longas horas entretendo colegas no corredor do prédio, fazendo com que eles enfrentassem ameaças e interagissem com personagens misteriosos, tendo o cuidado para que todos se divertissem, me ensinaram como pode ser boa a sensação de tecer um mundo fantástico e trazer os outros para se divertirem nele. Não esqueço uma sessão de Ravenloft de madrugada, em que os próprios jogadores me pediram que parasse. Motivo? Estavam realmente assustados com os caminhos do jogo.

Se hoje insisto em tentar essa carreira, em parte... em GRANDE parte devo isso ao jogo que ele criou.

Que o Primeiro Dungeon Master descanse em paz.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

E a estratégia começa a funcionar!

Sim, as naus saíram do Teja, regozijem-se pois! (Valeu, Antonio!)

Um dos meus personagens centrais é o Pero Vaz de Caminha, aquela da carta, vocês o conhecem. Aqui, ele é apenas um aprendiz de escriba, começando a penar na corte e com seu mestre: Rui de Pina, que divide o papel de protagonista com ele, é um bocado cruel, pretensioso, arrogante. Quem disser que ele é meu alter-ego, vai ter o comentário apagado. :P

Enfim, como prometo responder os comentários em um outro post, agora deixo dois trechinhos do Pero pra vocês:

***

Pero e Nimue


A mão esguia e branca de Nimüe encostou na sua . Foi só por um momento, mas era como se facas cortassem sua alma. Pero já ouvira falar de Fata, o Destino, a deusa louca que dança aleatoriamente em um sentido que só ela desvenda. Pela primeira vez, o jovem cronista encarava os seus olhos vazios de senso, sabendo que ali não encontraria resposta, apenas sua perdição.

A voz clara da sacerdotisa cortava como um sabre, ao despedaçar a alma do jovem escriba.

- Você é um rapaz lindo, Pero. Mas você sabe que sou comprometida, desde sempre consagrada ao serviço e aos caprichos de meus deuses. Poderei ser sua amiga. Poderemos mesmo nos tornar amantes. Mas não espere que eu ame você, ou que me prenda. Não ache que vai se tornar especial. Não pensei que serei sua. Isso não irá acontecer. E principalmente, para o seu próprio bem, não se apaixone por mim. Isso poderá matá-lo.

Talvez um homem com o senso de honra imaculado de um cavaleiro reagisse a essas palavras com uma exaltação do seu próprio senso de dignidade e desse as costas. Ou um senhor mais orgulhoso teria rido da oferta, pois poderia ter qualquer mulher.

Pero não era cavaleiro nem senhor. Mal era um homem. Ainda de cabeça baixa olhou para as suas próprias mãos, pensando em si. O que era ele? Um aprendiz, um nada, um pobre coitado, filho mais novo de um nobre empobrecido de ultimo extrato. E não bastasse essa origem, ainda nascera fraco, magro demais para empunhar uma arma. Tornara-se escriba pois pensara que ali poderia estar um talento oculto. Mas não alçara lugar nenhum com essa profissão, pois não possuía as ligações sociais corretas.

Pero, para todos os efeitos, era pouco mais que nada.
E Nimüe era tudo. A futura Grã Sacerdotisa de Avalon. Escriba e trovadora, sacerdotisa e maga; a mulher mais linda e perfeita que ele jamais vira.

O que ela vira nele? Não possuía valor algum, para poder ser digno dessa atenção semi-divina. Com a íntima certeza que caminhava em direção a um abismo, mas simplesmente sem poder evitar, ele entregou-se na mão dos deuses dela, que não eram os seus, Pediu perdão ao Nazareno. Sabia que nada de bom sairia dali para ele. Seu destino estaria selado no momento em que aceitasse o que Nimüe sugeria.

Ergueu a cabeça.

- Senhora, não posso almejar nada mais do que essa sua gentil oferta. Enquanto a senhora me desejar, ficarei honrado em partilhar da sua companhia, sem nada exigir...

Quanto a parte de não se apaixonar, Pero nada respondeu.

Porque para isso, infelizmente, já era tarde.


***


Pero e a Imperatriz


Tremendo, sentindo o frio entrar nos ossos, com medo, o jovem levantou o rosto. Os olhos dela tinham uma cor estranha, terrivelmente incomum, um cinza que parecia esculpido em uma chapa de metal. A comparação com lâminas dispostas a cortar a sua garganta não fez muito para lhe acalmar. Pero passou a língua nos lábios e perguntou, a voz rasgando, depois do silêncio:

- E quem é você? É rainha do Finisterra?

Se ele tivesse como, preso do jeito que estava, o luso teria se encolhido. A mulher riu, uma risada aparentemente agradável, mas que ecoava nos ossos.

- Eu sou a Senhora do Vazio. Na minha cabeça, a coroa do que não existe. Nada tenho e por isso, dona do nada eu sou. Imperatriz do Fim da Terra. E dos sonhos. A Dama que prende as almas. A algoz que pode cortar tua garganta, Pero Vaz de Caminha. Viajaste tanto para morrer em minhas mãos?

Uma corrente pesou no pescoço do aprendiz. Rui de Pina soltou um grito abafado, quando viu Pero vergar com a solidez do metal. Mesmo com a garganta travada pelo ferro místico, conjurado pela Imperatriz, ele conseguiu responder, sorrindo para seu mestre.

- Não. Naveguei porque foi preciso.

Cada vez mais o corpo magro do escriba curvava-se. Sua dor devia ser indescritível. Rui tentava gritar, mas a magia daquela terra o impedia. Olhou ao redor, e viu Nimue e Lalaing debatendo-se. Alguém tinha que fazer alguma coisa.

- E valeu a pena, criatura vil?

- Não há o que não valha quando se quer a grandeza da alma, Senhora. Nenhuma dor é pouca para dobrar os cabos do mundo. Porque afinal, é o mar o espelho do céu.

(e feliz aniversário pra mim!)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Como escrever um romance

First of all:

- Obrigada pelos elogios, pessoas. Eu me faço de humilde mas é porque eu preciso ser elogiada. Meu ego precisa de massagens diárias e como ando presa em casa por causa do pé...


- Mila, li 'O nome da rosa', mas não o Baudolino. Tenho mas ainda não li.


- Caro 'junker-que-eu-sei-quem-é', se você assinar com um perfil identificável e fizer uma crítica sólida, eu deixo o comentário ficar. Ou o melhor: não deixo. Não sou obrigada a aguentar anônimos rancorosos postando seu fel por aqui. Não gosta? Não leia. Nhé.


***


Bem, nos comentários da primeira postagem sugeriram que eu escrevesse de forma não linear, indo do final até o começo.


Na verdade, isso é escrever de forma linear, só invertida. O que acontece comigo, no caso de Finisterra, é justamente uma escrita não linear. A primeira coisa que escrevi foi aquele trecho que postei ontem. Depois o primeiro capítulo, então o final, o prólogo, trechos do que deve ser o 5o capítulo.


E foi aí que dei a primeira travada. Por mais que tentasse escrever qualquer trecho da história, não saia nada. Respirei fundo e tentei ir pelo caminho mais certinho, começando o segundo capítulo... Avançei algumas páginas e nada. Não consigo tirar as embarcações do Tejo.


A lógica reversa também não funcionou. Avançar do final até o começo.


Eis o ponto desde blog, tentar me focar no universo ficcional que eu criei.


Sugeriram escrever contos. Oras, se eu tivesse outras histórias para escrever, as escreveria, mas não é o caso. A história que eu quero contar é como Rui de Pina e Pero de Caminha participaram de uma expedição importante. E isso conta-se em um romance, com seus detalhes e seus caminhos. E claro, seus coadjuvantes.


Outro comentário é que me 'rendi' à atual modinha dos 'escritores revelação' de criarem blogs para ficar divulgando obras que nem sempre estão prontas ou em via de publicação. Este não é o caso em absoluto. Aqui, não vai ter descrições de personagens que parecem históricos ruins de ficha de RPG. Posso até dividir o que penso sobre as pessoas do meu livro, se for uma questão relevante.


Não vou postar capítulos inteiros. Trechos por vezes irão aparecer . O de ontem foi para apresentar a obra. Se eu tiver algum problema com um trecho em específico, sim, posso colocar.


Isso aqui é pra bater papo e receber feedback, tentar dividir um processo e desbloquear a escrita.


Não, ainda não surtiu efeito...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Um gostinho de 'Finisterra'

(O trecho abaixo foi postado no meu blog 'Doces Pensantes' no ano passado, como um 'teaser' de Finisterra. A cena é a chegada da esquadra de Cabral nas bordas do fim do mundo. Não é definitivo, claro, nada no livro por enquanto é. Talvez o título, gosto dele. E os protagonistas, claro.

Ah, sim: tio Pessoa, me perdoe, eu não sei o que faço!

Pessoal dos comentários: respondo no post de hoje a noite.)


Finisterra – Viagem ao fim de tudo.

Um período de calma atravessa o Grande Continente. Os povos do Norte não mais ameaçam as fronteiras do Danu. A paz finalmente foi firmada entre Albion, Francia e Burgúndia. Porém, do confim ainda desconhecido do mundo, uma ameaça surge.

Os Corte-Real, eminentes navegadores a serviço do Imperador Dom Manuel, partiram em expedição ao misterioso fim do mundo guiados por um velho diário semi-esquecido. Mas não retornaram. Anos depois, uma mensagem é encontrada, trazendo um aviso dos irmãos: os habitantes de onde o mar acaba querem tomar para si as terras do Grande Continente.

Como Imperador da Ibéria Lusitânia, cabe a D. Manuel resgatar seus súditos e impedir essa terrível invasão. Para isso reúne uma imponente esquadra, composta pelos mais capazes homens dos diversos reinos.

E como todo o grande feito precisa ser lembrado, o cronista-mor do Império, Rui de Pina, é enviado nessa expedição, junto com seu assistente, Pero de Caminha. Por missão, ambos devem retratar as glórias e as aventuras dessa esquadra. Mesmo a custo de sua própria vida.

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Foi a voz de Nimue que deu o alarme.

- Comandante, uma criatura vinda de Ocidente!

Rui, assim como os outros, virou para olhar na direção indicada. Embaixador calejado, não estranhava quase nada. Na verdade, já esquecera da última vez em que algo lhe causara estranhamento. Nem mesmo as mais fantásticas maravilhas afetavam seu coração a ponto de tirar o ar do cronista. Já vira sereias, licantropos, harpias, dragões, dragonetes, cavalos alados e de chifres, entre muitas outras criaturas.

À sua frente erguia-se um ser horrendo. Como um negrume, saiu da nuvem de escuridão que tinham avistado no horizonte e aproximava-se com uma rapidez inacreditável. Não conseguia definir seus contornos. Percebeu que era de cor escura, pois a luz nele sumia como se encontrasse a noite. Seu hálito pútrido chegou até a embarcação e fez com que Rui sentisse uma forte vertigem.

O monstrengo que saíra do fim do mar voou por três vezes ao redor da nau, chiando como um morcego que habitasse algum dos Infernos em que os nazarenos mais radicais acreditavam. Quando falou, sua voz pareceu querer furar os ouvidos dos presentes, estridente e alta que era.

- Quem ousou entrar nas terras que não desvendo, meus negros tetos do fim do mundo?

Rui tremeu. O comandante Cabral respondeu, a voz serena apesar da ameaça.

- Viemos a mando do glorioso Imperador D. Manuel, filho del-Rei D. João Segundo!

A sombra pestilenta não retornou para o lugar de onde viera. Aproximou-se e rodeou a nau outras três vezes. O cronista pode perceber contornos de um corpo largo, e placas de sujeira e imundícias. E novamente, a voz incômoda ressoou.

- De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço? Quem vem poder o que só eu posso, que moro onde nunca ninguém me visse e escorro os medos do mar sem fundo?

A voz fraca de Pero elevou-se trêmula para se fazer ouvir sobre o barulho da respiração da besta voadora.

- Viemos a mando do glorioso Imperador D. Manuel, filho del-Rei D. João Segundo!

E o monstrengo aproximou-se mais ainda. Rui lembrou de algo, ensinado por Nimue no início dessa jornada, quando atravessaram uma grande calmaria. Pois que a sacerdotisa de Avalon havia explicado o poder tríplice em relação a tudo que era ligado à magia, e principalmente a criaturas mágicas. Antes que o monstro completasse três voltas pela terceira vez, o cronista usou sua voz, treinada em diversas embaixadas.

- Nesta nau, sou mais do que apenas eu pois sou um povo que quer o mar que é teu. Mais do que o mostrengo, que almeja minha alma e roda nas trevas do fim do mundo, obedeço a vontade de um só senhor. Assim iremos prosseguir, pois viemos a mando do glorioso Imperador D. Manuel, filho del-Rei D. João Segundo!

A escuridão fétida rugiu, um bramido pavoroso que gelou a alma de todos. Abriu suas asas de negrume e podridão, avançando em direção à pequena nau.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Mas afinal, que diabos é 'Finisterra'?

Dei-me conta (ó o português castiço) que nem todo mundo vai saber do que eu estou falando.

Assim:

Sou contista. Ruim, mequetrefe, de um quarto de tigela e um décimo de pataca. Mas contista.

Só que me veio a idéia para um romance. Um épico! Uma saga! Com dois protagonistas que geralmente seriam personagens secundários.

Aí, nasceu 'Finisterra', do meu amor pelos cronistas medievais, sempre narradores, sempre coadjuvantes, jamais protagonistas.

Em um mundo parecido com o nosso, mas diferente a beça, um Imperador organiza uma expedição a um lugar inóspito e pouquissímo conhecido para resgatar dois navegantes e um valioso diário. Reune uma comitiva com representantes de diversos lugares: cavaleiros, feiticeiras, alquimistas...

Só que quem nos conta a história são dois cronistas. O mais velho, Rui de Pina, está nessa a contragosto, pois preferia assegurar seu lugar na corte ao invés de partir em uma aventura perigosa, cheia de riscos. O mais novo, Pero Vaz de Caminha, é aprendiz do Rui de Pina e mostra-se entusiasmado com todas as novidades.

Os personagens são em parte baseados em pessoas reais, mas alterei idades, datas, lugares, títulos.

Refiz o mundo à minha imagem e semelhança. O que explica a sua incoerência interna.:)

Um blog para escrever um livro

Chega uma fase em que travamos. De todo. Em tudo.

E foi o que aconteceu comigo. Minhas leituras não andam, meus estudos pararam, minha escrita... hum, melhor nem começar por aí. Quase pensei, primeiro, em abandonar tudo. Mesmo. Tipo, largar tudo e sumir na vida? Dane-se o mundo, eu vou ser hippie e visitar um guru na Índia.

Mas isso é sooooooooooooo last season (ando usando gírias esquisitas, não liguem). Se o Ringo Star fez, não pode ser hype. Então, achei que pudesse ser uma pessoa séria, me dedicar apenas ao trabalho e ao mundo acadêmico.

Estou proibida de beber por enquanto e aturar um mundo em que só exista BN e UFF sóbria... Oh well. Não dá. MESMO.

Então decidi: ia dar um boot na minha vida literária, largar esse negócio de literatura especulativa e partir para coisas ''sérias'', realistas, maduras.

Preciso dizer que eu *não* sei fazer isso?

Conclui que a vítima da vez seria o meu *cof* romance*cof* de 'fantasia-história-alternativa-valsa-do-lusitano-pancada' que tento escrever, com o título provisório/definitivo de Finisterra: viagem ao fim de tudo. Bom título, péssimo subtítulo. Até porque, vejam bem... faz pra mais de oito meses que escrevi algo sobre os descaminhos dos dois cronistas lusos.

Mas recebi incentivos (do Tevão, meu namorado) e ameaças (de alguns leitores betas, Jacques Barcia entre eles).

Vamos então tentar resolver isso com esse blog. Como assim? Espero que desenvolvendo idéias, conversando ou mesmo me obrigando a escrever 3 vezes na semana aqui (atualizações 2as, 4as e 6as) eu consiga atravessar o Grande Oceano.

Pois foi justamente aí que eu parei. Apesar de já saber o final (sem spoilers, só digo que tio Martin me ensinou algo), não consigo partir literalmente. O primeiro capítulo - que precisa e muito ser reescrito - para com todos os personagens apresentados. A parte do segundo que escrevi termina abruptamente no porto de Lisboa, às margens do Tejo, depois que o Imperador Dom Manuel segue em comitiva até os barcos, já prontos para sair.

E agora? Porque me recuso a deixar Pedro Alvares Cabral liderar a sua esquadra em rumo ao 'cabo do fim do mundo, onde a terra acaba e o mar começa'? Porque não consigo fazer a narrativa fluir em meio a calmarias e tempestades do Oceano, primo-irmão do nosso Atlântico?

Talvez eu precise de companhia. Por isso, vou largar aqui reflexões, pedaços não reveladores, explicações e até falar sobre as minhas dificuldades para seguir nessa viagem.

Estão dispostos a me acompanhar?